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domingo, 4 de outubro de 2009

Intervencionismo Estatal


Em um dado momento da história da humanidade a sociedade entendeu que a intervenção direta do Estado nas relações intersubjetivas cerceava a Liberdade do sujeito de direito. Eclodiram assim movimentos revolucionários de libertação do séc. XVIII e oriundos do Iluminismo como a Revolução Francesa, que invocava a Liberdade, Igualdade e Fraternidade como princípio que deveriam nortear as relações intersubjetivas existentes na Sociedade. Surgiam as raízes do Liberalismo econômico, combatendo o absolutismo monárquico e o domínio da Igreja para dar a burguesia o direito da livre negociação e proporcionar a formação do Estado Democrático1. Neste momento a Era Moderna passa a colocar a Liberdade como condição natural do homem no centro do direito.2 Junto à supremacia da vontade popular e da igualdade de direitos, a preservação da liberdade passou a ser um dos principais pontos norteadores do Estado em que ao sujeito de direito foi atribuído o poder de dispor de seus bens sem qualquer interferência do Estado, salvo os limites de preservação da liberdade de outro sujeito de direito.3 A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 é o berço da constituição da Teoria dos Direitos Subjetivos tendo como princípio norteador a Liberdade.
Após a Revolução Industrial esta atividade econômica liberal se reproduziu de forma crescente dando lugar aos produtos industrializados em detrimento dos manufaturados havendo produção em larga escala com o crescente consumo dos produtos, massificação das relações intersubjetivas e em dois séculos concretizou -se a realidade da Sociedade de Massa em que a Liberdade sofreu notório declínio no que tange a sua aplicabilidade nas relações entre sujeitos de direitos, sendo alvo certo da uniformização institucional da manifestação da vontade.
Notamos também que o aumento expressivo das relações entre sujeitos viabiliza a intervenção estatal de forma mais repetitiva e em constante crescimento a julgar pelo surgimento de ramos do Direito que fogem aos princípios gerais construídos pelos teóricos modernos como, por exemplo, a passagem do Estado Liberal para o Intervencionista no que se refere às relações de trabalho e mais recentemente o surgimento de novos ramos do Direito como o do Direito do Consumidor em que o Estado atua de maneira mais direta nos contratos firmados entre sujeitos de direito para que retome a igualdade entre partes contratantes frente à disparidade econômica dos mesmos.
1 LAROUSSE, Enciclopédia Cultura v25, pág 5136.
2 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio, Estudos de Filosofia do Direito, pág 106.
3 DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado, pág 151.
[Bruna Neubern]

Contrato como cálculo de risco


A Liberdade acompanhando o surgimento da Sociedade de Massa afastou-se da idéia de vontade inserida pelos modernos nas relações jurídicas e aproximou-se do cálculo de custos e benefícios provenientes, por exemplo, do risco de contratar.
O contrato como bom representante dos direitos subjetivos, esboça perfeitamente o citado processo de transformação dos conceitos jurídicos em que, em um primeiro momento da Teoria dos Direitos Subjetivos é invocada a livre manifestação da vontade como condição de validade do contrato e em outro surge uma padronização dos acordos firmados, representada pelas chamadas condições gerais do contrato.1
Embora possamos encontrar ainda hoje em nosso ordenamento os reflexos das teorias modernas com influências do cristianismo no que se refere à vontade como atributo da Liberdade, estamos diante de outro deslocamento conceitual do tema com base na realidade fática da Sociedade de Massa.
Usemos como base de análise alguns dispositivos legais contidos no Código Civil que trazem artigos como o Art. 104 determinando as condições da validade do negócio jurídico, a saber:
I – agente capaz;
II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III – forma prescrita ou não defesa em lei.
Estes três elementos integram o tripé de sustentação dos negócios jurídicos firmados entre sujeitos de direito subjetivo. Neles encontramos reflexos da influência dos modernos no que tange à aplicabilidade da vontade enquanto atributo da Liberdade vez que ao agente capaz é atribuída a consciência e a vontade da pessoa reconhecida pela lei como apta para exercer os atos da vida civil.2 O agente capaz é o que dará o consentimento válido à efetivação do negócio que não poderá sofrer qualquer intervenção em sua intenção subjetiva.3
Outros dispositivos legais preconizam ainda o vício na declaração da vontade quando esta é exercida movida por motivos falsos determinantes da manifestação da vontade, como descrito no Artigo 140 do Código Civil:
Art. 140. O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante.
No que se refere aos contratos, o princípio da “pacta sunt servanda” (o que foi pactuado deve ser cumprido) é preconizado pela letra da lei como, por exemplo, nos Artigos 427 e 481 do CC.:
Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso.
Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro.
Embora os dispositivos legais citados tragam consigo características modernistas oriundas da Teoria dos Direitos Subjetivos no que tange à vontade como elemento essencial da validade dos negócios jurídicos resultando, por conseguinte, na obrigatoriedade do cumprimento do que foi pactuado4, vivemos atualmente outra realidade. Estamos diante de uma estrutura social em que ocorre uma massificação dos produtos (objeto dos contratos), dos sujeitos de direitos (partes contratantes), e das formas de contratar. A livre manifestação da vontade invocada pelos modernos dá lugar à uniformização de tal manifestação atingindo a Liberdade que neste sentido se aproxima de uma atividade calculista onde são descritos os benefícios e os possíveis riscos de contratar5. Esta tendência à uniformização acaba por cercear o poder de negociação das cláusulas contratuais vez que os contratos seguem padrões que visam atender à demanda da massa.
Fenômeno interessante a ilustrar a referida uniformização é o do surgimento das condições gerais dos contratos que, contrárias aos antigos costumes comerciais, revestem-se da forma contratual muito embora sejam determinadas por uma única parte contratante. São os chamados modelos contratuais padronizados que se prestam tão somente a individualizar a participação da outra parte por meio de espaços deixados para que o contratante destinatário6 preencha-os com seus dados pessoais e firme o termo.
Ora diante desta realidade fática ocorrida na Sociedade de Massa não podemos entender ainda que o contrato é por excelência um acordo bilateral de vontades como entendiam os modernos, vez que atualmente reservam os contratos o esboço dos riscos e benefícios oriundos de determinado negócio em detrimento da livre manifestação da vontade enquanto atributo do exercício da Liberdade. Aos que defendem que em um contrato de adesão não há a livre manifestação da vontade, porém há a manifestação da vontade, reduzem à referida manifestação a uma simples ação exteriorizada no ato de firmar o termo contratual, portanto distancia-se a vontade neste sentido do atributo constitutivo da Liberdade para mais uma vez aproximar-se da atividade calculista e consciente de contratar.7 O deslocamento conceitual neste caso é gritante até mesmo na tentativa de adequação dos institutos jurídicos doutrinários aplicados ao caso concreto, mesmo porque reside uma incoerência conceitual clara quando pensamos na possibilidade da manifestação da vontade sem que ela seja essencialmente livre.
Essas características são próprias da massificação das relações sociais conseqüentes de um processo histórico marcado pelo início do período industrial resultando na explosão demográfica, aceleração da urbanização, gigantismo empresarial e concentração de capitais, fornecimento de bens em grande escala, consumo em massa, impossibilidade real de negociação entre os grandes fornecedores e todos que necessitam dos bens e serviços, desigualdade do poder negocial, utilização massiva dos meios de comunicação e propaganda etc... 8
É interessante notar que o aumento expressivo das relações entre sujeitos nas Sociedades de Massa pressupõe maior intervenção do Estado em tais relações vez que sendo o sujeito de direito subjetivo atingido pelo processo econômico, e como cita Paulo Luiz Neto Lobo, é considerado como entidade operativa do referido processo em detrimento de sua posição como portador de livre escolha, surgem mecanismo jurídicos que visam equalizar os pólos das relações jurídicas.
1 LOBO, Paulo Luiz Neto, Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas, pág. 12.
2 MONTERIO, Washington de Barros, Curso de Direito Civil I – Parte Geral, pág. 183.
3 Neste sentido estamos diante da vontade juridicamente reconhecida como base do direito subjetivo. É o caráter privado da teoria como abordado no cap. 5, item 5.2.
4 Neste sentido para os modernistas a manifestação livre da vontade por parte os sujeitos de direito cria um vínculo jurídico que obriga as partes contratantes.
5 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio, Estudos de Filosofia do Direito, pág 119.
6 LOBO, Paulo Luiz Neto, Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas, pág. 14.
7 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio, Estudos de Filosofia do Direito, pág 119.
8 LOBO, Paulo Luiz Neto, Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas, pág. 13.
[Bruna Neubern]